14/01/2025

SPVAT era um novo tributo disfarçado de seguro




A Lei Complementar 207/2024 havia instituído o “Seguro para Proteção das Vítimas de Acidentes de Trânsito” (SPVAT). Este artigo demonstra que o SPVAT não seria um “seguro” em sentido técnico, tratando-se de novo e irregular tributo que seria criado com finalidade arrecadatória preponderante.

Os sinistros de trânsito são uma das principais causas de mortes não naturais e invalidez do mundo. O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever do Estado (cf. Constituição Federal, art. 144, § 10 e Código de Trânsito, art. 1º, § 2º). Diversos consensos internacionais indicam que o “seguro obrigatório” é componente importante para a promoção da segurança no trânsito, dentre eles a Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2021-2030” promovida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). 

Com essa introdução, aponta-se o prejuízo social causado pela captura e distorção para fins fiscais de debate necessário sobre novo formato de “seguro obrigatório para veículos” no Brasil.

A Lei Complementar n. 207/2024 pode ser lei e pode denominar o novo tributo como “SPVAT”. Em que pese o nome, a distribuição das receitas do SPVAT demonstra que parcela irrisória ou nula do novo tributo se destinaria à formação de fundo mutualístico para o pagamento de indenizações securitárias por sinistros de trânsito. 

Em ordem decrescente de participação no produto das receitas do SPVAT, cita-se a destinação de 40% para o Sistema Único de Saúde (SUS) (LC n. 207/2024, art. 24). Em relação a esta rubrica específica, a qual também existia no extinto DPVAT, o STF entendeu em ocasião anterior que essa vinculação é constitucional e não o descaracterizaria como seguro obrigatório. 

No Brasil, o INSS e o SUS cumprem diversas funções securitárias e assistenciais que em outros países não são ofertadas, e os acidentes de trânsito são origem de relevantes gastos públicos de saúde e previdência no atendimento às vítimas de trânsito. Sem questionar a correição e atualidade do fundamento utilizado pelo STF, destaca-se não haver discussão que parcela relevante do antigo DPVAT e do SPVAT que seria criado teriam natureza jurídica de contribuição social, uma das espécies tributárias.

Os estados e municípios receberiam 35% e 40% das receitas do SPVAT caso ofertassem serviço municipal ou metropolitano de transporte público coletivo (LC n. 207/2024, art. 22). O transporte público coletivo é componente importante do trânsito, entretanto, nada tem de “fundo mutualístico” característico dos produtos securitários. Tratar-se-ia de nova contribuição de intervenção no domínio econômico (Cide), uma “Cide-SPVAT”. 

Os estados e municípios já participam das receitas da Cide-Combustíveis (Constituição, art. 159, III) e teriam então a “Cide-SPVAT” sem vinculação a quaisquer contrapartidas securitárias para reforço dos orçamentos.

A terceira principal destinação das receitas do SPVAT teriam a natureza jurídica de irregular “empréstimo compulsório” (Constituição, art. 148). Nos primeiros anos de operação do SPVAT suas receitas livres serviriam para destinação oposta à constituição de fundo mutualístico securitário. 

Cerca de 17% das receitas seriam destinadas ao “equacionamento de eventual déficit do DPVAT referente a sinistros ocorridos até 31 de dezembro de 2023” (LC n. 207/2024, art. 17). Trata-se do inverso do “seguro”, o qual se destina a cobrir riscos futuros. Destinação para novos sinistros somente quando quitado o passivo de obrigações anteriores, não tendo a Susep disponibilizado estudo técnico sobre o tema. Demonstrado neste e nos parágrafos anteriores que 97% das receitas dos prêmios do SPVAT não teriam natureza securitária.

Os 3% de receitas remanescentes também não teriam destinação securitária. Cerca de 2% das receitas das apólices do SPVAT seriam destinadas ao Coordenador Nacional do Sistema Nacional de Trânsito para desenvolvimento e implantação de programas destinados à prevenção de sinistros de trânsito. Destinação louvável, mas, novamente, fora da finalidade securitária. 

Reconhecida sua natureza tributária, a destinação de 2% das receitas para o Sistema Nacional de Trânsito teria estrutura de “IPVA Federal” e, por isso, inconstitucional. E o 1% restante teria natureza de “taxa” (tributo), porque destinada a restituir despesas de cobrança e registro do SPVAT em órgãos públicos (LC n. 207/2024, arts. 6º, § 1º e 25).

Demonstrado que o SPVAT teria natureza tributária preponderante, possivelmente única. Deste modo, independente da designação que lhe dê a LC 207/2024, mesmo no melhor cenário e somente após alguns anos da cobrança o máximo de 17% seria dedicado à constituição de fundo mutualístico para o pagamento de indenizações securitárias. A nova “Cide-SPVAT” seria material e formalmente inconstitucional.


*Adriano Castro é assessor jurídico da ABLA e advogado de referência nacional no setor de locação de veículos e integrante da Câmara Temática de Esforço Legal (CTEL) do Conselho Nacional de Trânsito (Contran).