Há muito se tem discutido sobre a necessidade de revisão da aplicabilidade da Súmula 492 do Supremo Tribunal Federal, muitas vezes descriteriosa, nos processos em que há a condenação de uma locadora de veículo em caso de acidente de trânsito envolvendo automóveis de sua propriedade.
Com rápido e considerável crescimento, a área de locação de veículos vem mostrando ter expressiva importância na economia do país, tornando a presente discussão ainda mais relevante em razão dos prejuízos financeiros causados ao setor, decorrentes de tal entendimento jurisprudencial.
A súmula, aprovada no ano de 1969, estabelece que: "A empresa locadora de veículos responde, civil e solidariamente com o locatário, pelos danos por este causados a terceiro, no uso do carro locado".
Muito recorrente nas decisões que envolvem a matéria, o entendimento acima teve como um dos precedentes o Recurso Extraordinário nº 60477, julgado em 1966, que trazia em seu cenário fático um locatário que buscou uma empresa de locação de veículo e, por não possuir carteira de habilitação válida, indicou um terceiro habilitado para conduzir o automóvel alugado. Porém, ainda na vigência do contrato, o locatário assumiu a direção do veículo e causou um acidente, além de danos a terceiros.
Outros dois precedentes fundamentaram o enunciado, julgados nos anos seguintes, em 1967 e 1968, consolidando o entendimento acerca da solidariedade passiva das locadoras de veículo considerando os cenários fáticos específicos e peculiares analisados na época.
Em breve síntese, o recurso analisado em 1967 (RE 62247) envolvia o atropelamento de um menor por condutor de veículo locado, devidamente habilitado. Já o recurso debatido no ano de 1968 (RE 63562) apenas cita os dois recursos anteriores, fundamentando a responsabilidade solidária na afirmação que "recentes decisões têm aceito a co-responsabilidade da empresa locadora de automóveis".
Ressalta-se que, na época da edição da Súmula 492, o artigo 121, §4º, do antigo Código Nacional de Trânsito (CTN) previa a responsabilidade das empresas e outros estabelecimentos de veículos pelas infrações decorrentes da ausência de alguma das condições exigidas para o tráfego de veículos. Assim, sendo a habilitação para dirigir um requisito mínimo, os ministros do Supremo Tribunal Federal entenderam que, por auferir lucro com a locação de veículo, deveria ser exigida das locadoras de veículo uma vigilância especial, decidindo pela sua responsabilidade solidária no que tocando ao dever de indenizar.
É possível concluir através da análise dos precedentes citados que a finalidade ao editar o referido enunciado foi responsabilizar a empresa locadora solidariamente, quando caracterizada a responsabilidade civil subjetiva. Infelizmente, não é o que ocorre nas decisões proferidas pelos tribunais de todo o país.
Não são raras as condenações envolvendo as locadoras de veículos baseadas em elementos equivocados, simplesmente pela aplicação descriteriosa da Súmula 492 do STF, o que corrobora com a necessidade da rápida e urgente regulamentação da legislação, buscando uma análise coerente para apuração de eventual responsabilidade solidária da empresa nestes cenários.
O artigo 265 do Código Civil é claro e objetivo ao impor que a solidariedade não se presume, resultando de lei ou de vontade das partes. Ou seja, não havendo legislação que imponha a responsabilidade solidária à locadora de veículo por ato ilícito praticado exclusivamente por condutor de automóvel alugado, as condenações nesse sentido comprovam que a mencionada súmula é utilizada indiscriminadamente para fundamentar o suposto dever de indenizar.
Na maioria dos julgamentos, o cenário do processo não teria o condão de justificar/legalizar tal condenação, seja simplesmente em razão da ausência de responsabilidade solidária disposta na legislação vigente, seja pela absoluta ausência de lastro probatório que pudesse imputar à empresa eventual responsabilidade subjetiva. Assim, verificada a culpa do condutor do veículo alugado no acidente objeto da ação, a súmula é aplicada para condenar a empresa locadora, sendo suficiente apenas que esta conste no polo passivo da ação.
Nesse sentido, o artigo 489 do Código de Processo Civel traz em seu §1º, inciso V, importante condição para que a sentença seja considerada válida/fundamentada, considerando tratar-se de elemento essencial da mencionada decisão:
"Artigo 489 — São elementos essenciais da sentença:
§1º. Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
V — se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos".
Desse modo, de acordo com a referida disposição legal, uma decisão não será considerada devidamente fundamentada quando apenas invocar súmula sem evidenciar que o caso em concreto se adequa àqueles fundamentos.
Apesar de sua edição ultrapassar 50 anos e ser eventualmente mal interpretada, não se nega a possibilidade de aplicação da Súmula 492 do STF. Porém, defende-se a correta interpretação do enunciado, culminando com julgamentos coerentes e justos quando a razoabilidade e a análise do caso concreto, de fato, assim permitirem.
*Carina Varanese é advogada do escritório CostaMarfori Advogados, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Fonte: Revista Consultor Jurídico (conjur.com.br)